Primeiramente, devemos esclarecer o processo grevista em si, que ainda é alvo de muitos preconceitos, resultantes de uma democracia forjada e de uma mídia oligárquica, que condena e criminaliza os movimentos sociais. É necessário esclarecer que a Greve Estudantil é legal, não havendo norma que a proíba. O direito de “greve” é uma conquista coletiva muito importante dos trabalhadores e, muitas vezes, o único instrumento que os mesmos têm em mãos, no caso de abusos ou violação de seus direitos no ambiente de trabalho. A Constituição Federal de 1988 resguarda o direito de greve:
Art. 9º: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.”
Assim, a lei não restringe o direito de greve, senão o protege, sendo constitucionalmente admitidos todos os tipos de greve, reivindicatórias, de solidariedade, políticas ou de protesto. Com efeito, as greves estudantis têm claro sentido político, solidário, reivindicativo e de protesto, são armas historicamente usadas pelos estudantes para garantia de seus direitos e conquista de novos.
A decisão dos estudantes da Faculdade de Medicina de Marília ocorreu após Assembleia Geral convocada por suas entidades legais e legítimas de representação, o Diretório Acadêmico Christiano Altenfelder (DACA) – do curso de medicina, e o Diretório Acadêmico Fernanda Cenci (DAFC) – do curso de enfermagem. A Assembleia Geral teve participação de mais de 300 estudantes, sendo legítimas e válidas as decisões tomadas, coletivamente, pelos presentes para todos os estudantes da faculdade.
É importante lembrar, que apesar de a greve estudantil ter sido deflagrada no segundo semestre de 2013, tivemos uma intensa mobilização dos estudantes durante o primeiro semestre, com assembleias, atos e muitas tentativas de diálogo com a direção. Aliás, desde 2011 nossas reivindicações têm sido colocadas de maneira forte e coerente perante a direção: foram muitos documentos e reuniões, que tiveram pouca resolutividade.
Em agosto de 2013, os funcionários do complexo Famema deflagraram greve, reivindicando reajuste salarial e melhores condições de trabalho. Em seguida, os docentes também entraram em greve, reivindicando aumento salarial, plano de carreira docente, autarquização (explicada abaixo) do complexo Famema, incorporação da nossa faculdade a uma universidade pública paulista (a famosa encampação!) e contratação de mais docentes. Os estudantes, já velhos na luta, encontraram, nessa conjuntura, o momento ideal para intensificar sua luta por uma Famema melhor. Então, em 28 de agosto de 2013, a assembleia estudantil, com 310 votos a favor e uma abstenção, votou pela greve estudantil. Os residentes multiprofissionais também aderiram à greve posteriormente e, em assembleia geral unificada, foi decidido por um movimento conjunto dos setores em greve.
Por que decidimos greve?
A FAMEMA foi criada como instituto isolado de ensino superior, em 1966. Seu funcionamento foi autorizado em 30 de janeiro de 1967, como instituição pública municipal de ensino superior de medicina. Uma lei municipal de dezembro de 1966 constitui sua entidade mantenedora – a Fundação Municipal de Ensino Superior de Marília (FUMES), uma fundação pública de direito privado (custeada por recursos do estado e de fontes privadas), com autonomia administrativa e patrimônio próprio. Em 1981, foi criado o curso de enfermagem. No ano de 1994, juntamente com a Faculdade de Medicina de Rio Preto (FAMERP), a FAMEMA foi formalmente estadualizada, como uma autarquia (entidade pública autônoma, ligada ao estado, mas com administração descentralizada) vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia (responsável pelo direcionamento de verba e manutenção da faculdade).
Após 19 anos, apesar da estadualização, a FUMES continuou gerindo o complexo FAMEMA, mantendo aluguéis e gastos administrativos dos prédios, que nunca foram comprados. O Complexo Famema é responsável pela assistência à saúde de 62 municípios, que abrigam quase dois milhões de usuários SUS. Em 2007, foi criada a FAMAR (Fundação de Apoio à Faculdade de Medicina de Marília), uma nova fundação, conveniada com a FUMES, estando a última impossibilitada, por irregularidades fiscais, de se responsabilizar pela realização dos repasses ao Complexo e contratação de funcionários.
Apesar de todos os esforços da instituição, ao longo desses últimos 19 anos, a estadualização do complexo educacional e assistencial da FAMEMA nunca de fato se concretizou. Temos, desde então, nos mantido com a verba da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, repassada às Fundações, responsáveis em manter o quadro de funcionários, docentes, assim como a estrutura necessária à área acadêmica. O restante da verba advém do estado por conta da assistência aos pacientes SUS, e é encaminhada somente ao segmento hospitalar.
Boa parte do orçamento da Secretaria de Desenvolvimento Econômico Ciência, Tecnologia, que poderia ser investida na academia, é deslocada para manter o complexo hospitalar. A verba SUS não é capaz de manter a estrutura responsável pelo atendimento dos 62 municípios, pelos quais o complexo hospitalar de Marília é responsável. Logo, nos deparamos com situações de atraso no pagamento dos salários, não cumprimento do reajuste salarial de acordo com a inflação anual, falta de contratação e reposição do corpo docente e técnico-administrativo, ausência de plano de carreira, infraestrutura precária, tanto da faculdade, quanto dos hospitais, disparidade de valor nos vales refeições e auxílio estudantil.
Nos últimos dois anos, as esferas estadual e federal de governo injetaram um considerável montante de recurso na estrutura física e parque tecnológico da organização. No entanto, essa verba investida no Complexo foi redirecionada sem a participação da comunidade e foi insuficiente para suprir as necessidades de custeio mínimo da FAMEMA. Além disso, nenhuma política estruturante em relação aos funcionários foi instalada. Em 2011, o governo do estado de São Paulo autorizou uma reposição de 15% no salário dos funcionários, entretanto, não houve repasse de tal reposição. Para cumprir a folha de pagamentos, desde então, a direção da faculdade tem se utilizado de recursos base, que iriam para a manutenção, o que acelerou a deterioração assistencial e acadêmica. A incapacidade de repor funcionários e professores, por demissão e baixos salários, impactam na qualidade da assistência e da área acadêmica.
A direção da faculdade apoiou a proposta feita pela comunidade e se comprometeu em dar andamento ao projeto de encampação. Para viabilizar a encampação é necessária a autarquização dos hospitais, garantindo estabilidade da verba encaminhada à assistência, ao separar o custeio da academia do complexo hospitalar, pois as universidades paulistas alegam não ter condições de assumir o financiamento e gerência da parte assistencial. Desde 2012, a atual direção afirma estar trabalhando no projeto de autarquização, no entanto, mesmo após diversas tentativas de construir o processo, não tivemos acesso a nenhum documento oficial, sequer nos órgãos de decisão máxima da faculdade, dos quais fazemos parte. Essa postura antidemocrática explicita a falta de transparência da qual padecemos na instituição.
Atualmente, duas minutas de projetos de lei a respeito da autarquização do Hospital das Clínicas da Famema tramitam na secretaria de ciência e tecnologia. Somente após pressionamento nas negociações, durante a greve, conseguimos acesso a essas minutas junto à direção da Famema e discutimos de forma democrática com a comunidade em assembleia geral das categorias. Após um estudo exaustivo de ambos os projetos, muitas objeções foram colocadas acerca da possibilidade de parcerias público-privadas nos hospitais. É de conhecimento da comunidade que esse projeto privatizante contradiz a lógica de um Sistema Único de Saúde, gratuito, universal e profundamente controlado pela sociedade, que entende a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Em relação ao corpo discente, a minuta possui um artigo que possibilita a perda de estágios dos estudantes da Famema, ainda que parcialmente, para outras faculdades privadas. Essas faculdades, mediante pagamento, podem utilizar toda a estrutura pública em prol do ensino particular e limitar as atividades práticas de ensino estabelecidas atualmente para os cursos de medicina, enfermagem e pós-graduação.
O que reivindicamos?
- Valorização dos trabalhadores (política salarial, melhoria das condições de trabalho, funcionalismo público);
- Contratação de mais professores e funcionários;
- Melhorias e ampliação da infraestrutura hospitalar e acadêmica;
- Autarquização do complexo hospitalar da Famema, ou seja, divisão administrativa e financeira entre hospital e academia, que hoje recebem uma única verba do estado. Uma autarquização que garanta atendimento 100% gratuito.
- Encampação da academia por uma universidade pública paulista;
- Revitalização curricular dos cursos de medicina e enfermagem;
- Políticas de assistência aos estudantes carentes, como bolsas de auxílio estudantil e restaurante universitário;
- Democracia institucional com participação estudantil equânime nos órgãos de decisão da faculdade (hoje só temos direito a um voto, com peso menor que o voto dos docentes)
A luta foi árdua! Tivemos grandes barreiras no caminho: falta de democracia nas decisões, descaso do governo do Estado e da direção, acusações da mídia, tentativas de criminalização do movimento, assédio moral, entre outros. Apesar disso, tivemos grandes momentos durante a greve que demonstraram a nossa força. Levamos mais de 50 estudantes, docentes e funcionários para a Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), na qual participamos de uma audiência pública para expor nossos problemas e encontrar soluções. Fizemos grandes atos, como o “Abrace o HC”, o ato de ocupação da direção (em que estivemos no prédio administrativo da Famema e só saímos quando tivemos a carta da direção convocando uma reunião da congregação – órgão máximo de decisão da Famema) e, por fim, a ocupação da reunião congregação, quando os membros da direção ameaçaram vetar a presença dos estudantes.
Vitórias
Enfim, depois de muita porrada, saímos da greve com muitas conquistas, e o melhor, com uma força que mantém a luta acesa e incansável. A greve, também, culminou na conquista de muitas pautas antigas do movimento estudantil, mas que, sem pressionamento, jamais se concretizariam.
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- Não retaliação dos grevistas e reposição de atividades, mediante negociação direta com os estudantes
- Quase 2000 livros novos para a biblioteca
- Contratação de novos membros para o corpo docente da faculdade
- Aumento dos estudantes carentes beneficiados com auxílio estudantil de 16 estudantes para 60, com elevação no valor da bolsa de R$96 para R$330
- Revitalização do currículo dos cursos de medicina e enfermagem
- Inquérito civil expondo os problemas da Famema encaminhado para o Ministério Público
- Visibilidade na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
- Participação discente nos projetos de construção do Restaurante Universitário
- Revitalização do centro de convivência da FAMEMA
- Participação dos estudantes nos processos de autarquização do HC e encampação da faculdade
- Democratização dos órgãos de decisão da FAMEMA
Mas, e agora?
O sucateamento da educação é uma panorama geral, não só em nosso país, como no mundo inteiro. Não é a toa que vimos, nos últimos anos, diversas greves gerais nas universidades federais e estaduais Brasil afora. Sem contar todos os panfletos, cartazes, notícias a respeito da bancarrota da educação, que pudemos perceber durante as manifestações de junho e em tantas outras lutas.
Agora é sua vez. Apesar de todas as vitórias, há muito que lutar. Queremos fazer história dentro da nossa instituição! O Movimento Estudantil nunca dormiu e nunca vai dormir, estará sempre lutando e de braços abertos para todos que anseiam novas mudanças, brigando por uma faculdade melhor, que proporcione médicos de excelência para atuar na sociedade!